O futuro nas mãos de quem trabalha

Núcleo de tecnologia do MTST
4 min readJun 3, 2021

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“Incrível como tem gente qualificada na esquerda que acha que tecnologia funciona tipo mágica”. Esta frase, proferida de um jeito casual durante um almoço nos movimentados arredores da Berrini, foi a semente do que viria a se tornar a primeira muda de um promissor movimento de tecnologia militante: o Núcleo de Tecnologia do MTST.

Engana-se, porém, quem entende que este estopim inicial foi disparado por puro mau humor. Negativo: o que diagnosticamos ali foi uma completa hegemonia ideológica do neoliberalismo não somente sobre os meios de produção e as habilidades de desenvolvimento de software — tão imprescindíveis neste cenário de quarta revolução industrial que vivemos — mas também sobre a força de trabalho como um todo. Os trabalhadores do setor de tecnologia da informação, por mais precarizados ou valorizados que possam ser, não possuem uma identidade de classe nem tampouco um sindicato forte o suficiente para representá-los enquanto entidade coletiva. Além disso, por conta do déficit crescente de profissionais capazes de cumprir esta demanda, insatisfações trabalhistas e respostas às explorações corriqueiras do setor não são tratadas na base da organização de classe, mas sim resolvidas com a troca de empregador. Some-se a isso o canto da sereia do sonho do empreendedorismo como vetor de ascensão social ou mesmo o hábito de startups e firmas de TI de martelar formação política por meio de dinâmicas de grupo e reuniões de abraçar árvore com o RH e temos diante de nós uma massa de trabalhadores extremamente produtivos em termos de geração de tecnologia de ponta, porém entregando barato a mais-valia de seus trabalhos nas mãos do empresariado em troca da ilusão temporária de participação no capitalismo neoliberal.

Na periferia tecnologia pode significar desemprego ou piora nas condições de trabalho
Nas periferias a tecnologia pode significar desemprego e piora nas condições de trabalho

Nas periferias, porém, a história é outra. Enquanto uma parcela pequena consegue aprender as habilidades necessárias para se inserir no mercado de trabalho, o que se vê no seio do nosso povo é uma verdadeira reprodução de um sistema de castas tão brutal que muitos de nossos militantes sequer sonhariam em conhecer um programador qualquer dia que fosse. E foi pensando em todas estas problemáticas que nós do MTST entendemos que criar um Núcleo de Tecnologia seria uma tarefa importante para a militância de esquerda dos próximos anos.

Concebido em 2019, o coletivo nasceu do encontro entre militantes que trabalham com tecnologia e da tradição de formação política do maior movimento urbano do país, o MTST. Concilia métodos de educação popular freireana com o olhar atento para a tendência dos mercados e das demandas tecnológicas que o século XXI nos tráz. Estruturados como coletivo, rodamos programas de formação técnica voltado para a base de nossas ocupações buscando garantir oportunidades de trabalho digno que, a depender da lógica liberal, jamais lhes seria oferecida, além de trazer para as comunidades de desenvolvimento conceitos mais firmes de consciência de classe. Como resultado absolutamente consequente destes dois fatores, estamos formando militantes capazes de desenvolver tecnologia e nos tirar do atraso estratégico que só muito dinheiro seria capaz de comprar.

Nossos primeiros resultados começaram a aparecer: a primeira turma de Introdução à lógica de desenvolvimento de software com python, iniciada em janeiro de 2021, já está formada, no mercado e adensando seus conhecimentos em novas etapas de formação usando frameworks de desenvolvimento web e em tendências de futuro, como automação por meio de Internet das coisas (IoT). Chegamos neste patamar justamente porque nossa metodologia de ensino toma sempre como ponto de partida problemas cotidianos: escrever fluxogramas sobre manifestações de rua ou problemas das ocupações; desenvolver scripts para ajudar na organização de nossas cozinhas solidárias; criar programas capazes de, fim-a-fim, executar cadastramentos e acompanhamentos bastante próprios do movimento usando aplicações mobile.

Além dessa faceta pedagógica, dedicamos energia para a construção de soluções que ajudem a militância e o povo, colocando tecnologias que normalmente tiram empregos e precarizam ainda mais as relações de trabalho a favor da população mais vulnerável e mais necessitada. Um exemplo importante e bem-sucedido desta visão é nosso Contrate Quem Luta, um assistente virtual (chatbot) de WhatsApp que utiliza inteligência artificial, reconhecimento de voz e geolocalização para conectar militantes a oportunidades de trabalho (a la GetNinjas), sem cobrar-lhes um centavo pelo serviço. Atuamos também como software house em projetos de organizações e empresas que nos sejam simpáticas para garantir empregabilidade sustentável para nossa militância, a fim de fomentar mais ações como estas e fazer prosperar iniciativas que podem ajudar a virar o jogo para a classe trabalhadora brasileira no curto prazo.

Uma esquerda que fuja ao debate tecnológico está fadada a ser pega de surpresa a cada novidade. Facebooks, Whatsapps e enxames de bots não aparecem do nada; novidades são fruto de um desenvolvimento cotidiano da técnica bastante visível para quem é da área . Os meetups de hacktivismo legalistas, as análises de métricas de redes sociais e o temor de que as tecnologias vieram para tirar nossos trabalhos não nos bastam mais: precisamos ocupar e cultivar espaços para que as benesses daquilo que produzimos sejam revertidas para nós trabalhadores. Assim, com nenhum perdão da ironia ao pessoal da Faria Lima, conseguiremos ajudar a pautar as verdadeiras reformas de que nosso país precisa.

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Núcleo de tecnologia do MTST

Construímos soluções de tecnologia para impulsionar a luta cotidiana, fazê-la mais forte e o futuro cada vez mais de quem trabalha.